A Batida do Tempo – Epílogo

A Batida do Tempo – Epílogo (por Ana “Dabs” Carvalho)

A sede dos Vigias do Abismo estava estranhamente silenciosa após a tempestade do último caso. Porzia sentou-se na beirada da cadeira, os dedos percorrendo a cicatriz recente de Sangria que agora se cravava como uma videira em volta do seu antebraço — outra marca, outra dívida com o Clarão.

Do outro lado da sala, Jebediah limpava os óculos com precisão metódica, o maxilar tenso enquanto terminava de arrumar suas ferramentas médicas em sua maleta após examinar o último ferimento da lutadora.

– Você não deveria ter feito isso. – murmurou. – Tomar outra cicatriz tão cedo, logo depois da primeira. Você podia ter morrido.

Porzia deu um sorriso irônico, embora sem sua intensidade ou o tom debochado habitual.

– O quê, tá se preocupando comigo, doutor?

Jebediah não riu. Sua voz rouca saiu tão grave quanto no momento em que fizeram aquele acordo sombrio: se Mana Cerace, a entidade perversa do Clarão, ameaçasse possuir Porzia como possuiu Giordano ou as crianças meses atrás, uma amizade não ficaria no caminho da necessidade de eliminar o mau – e quem quer que o carregasse junto.

– Eu lhe fiz uma promessa, Porzia. E eu pretendo cumpri-la. – o silêncio pareceu gelar o espaço entre os dois. Mas o veterano continuou. – Mas também não significa que eu deseje te ver mergulhando de cabeça no perigo.

A boxeadora apertou o punho com mais força, como se o gesto pudesse aliviar o coração apertado. Jebediah sustentava com convicção o olhar carregado de Porzia.

O não dito, talvez por falta de traquejo ou de melhores palavras vindas de dois sobreviventes, pairava entre eles.

A porta se abriu com um rangido e Mallory entrou, seu casaco ainda cheirando a fumaça e magia antiga. Sem cerimônia, colocou três copos e uma garrafa de uísque na mesa.

– Ao esquecimento – disse, secamente, enquanto puxava uma cadeira para sentar-se próximo aos amigos, seus olhos vasculhando o vazio no horizonte como se ainda tentasse extrair algum sentido ou significado de tudo que haviam visto, e daquilo que havia feito, contra todas as possibilidades plausíveis, com o ritual que conjurara horas atrás. – Ou à lembrança. O que doer menos.

Com menos decoro ainda, Porzia pegou a garrafa, tomou um respeitabilíssimo gole e a passou para Jebediah.

– À Sininho. – disse ela, limpando o canto da boca com as costas das mãos, ainda com os olhos carregados, mas parecendo mais calma. – Que ela nunca se lembre do que fizeram com ela.

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Mais tarde, quando os outros se dispersaram, Porzia se viu de volta às docas, olhando para a água onde o Vingança Da Rainha Ana um dia flutuou sobre poeira dourada. O ar da noite era frio, e os respingos de água salina lembravam das cicatrizes novas quando faziam arderlevemente a pele ainda em recuperação. Mas o som e o cheiro do mar quando o porto estava vazio assim sempre lhe traziam um sentimento raro de paz.

– Sabia que te encontraria aqui!

Ela só ouviu Ed Mort se aproximar quando ele já estava ao seu lado, seu casaco de detetive esvoaçando ao vento do porto. A voz de Ed estava sagaz e vívida como sempre, mas não havia nada de sua animação habitual nela esta noite.

Porzia, ainda sentada em direção à água, levantou o olhar para o detetive – o “pior” detetive – e sorriu.

– Também veio me dar um tapinha na mão e uma lição sobre a Sangria?

– Tá brincando?! – ele tirou o cachimbo da boca, performando uma expressão perfeita de surpresa, então riu, ajeitou o casaco e sentou-se ao lado dela. – Primeiro que eu duvido que você fosse me ouvir, e segundo que, se a gente tivesse se entendido direito naquela hora de executar o plano, eu tinha é pulado junto com você!

Aquilo arrancou uma gargalhada sincera de ambos.

– Homem do céu, eu juro que naquele momento a gente estava com a convicção muito alinhada… Só faltou alinhar todo o resto!Riram por mais algum tempo, relembrando a situação caótica que fora a revelação dos planos de Gwyneth, mas aos poucos o riso foi cessando e dando espaço somente para os sons das ondas correndo e quebrando no cais…

Ficaram apenas observando em silêncio a vastidão inacabável do mar noturno, talvez se perguntando que outros tantos mistérios nunca conseguiriam sondar.

– …Também não consegue dormir? – Edgar quebrou o silêncio num tom brando, mas entristecido.

– Nah… – atirou uma pedra na água e balançou a cabeça. – Muito barulho aqui. – bateu com o indicador duas vezes na têmpora.

– Aquela canção de ninar ainda?

Porzia cerrou os dentes. Ela a ouvira novamente em seus sonhos — a mesma melodia amaldiçoada que escapara de seus lábios quando a cicatriz de Sangria a submergiu.

– É. Como um maldito fantasma, me atormentando.

Ed deu mais um trago em seu cachimbo, aquela expressão que ele sempre faz de quando os mecanismos intrincados de sua mente sempre tão inquisitiva estão trabalhando. Após um breve silêncio e mais algumas tragadas, falou novamente.

– Porzia… …me desculpe se for… incômodo perguntar. Mas como você descobriu a motivação da Gwyneth?

– Eu só… – ela começou a resposta já sem claramente saber pra onde ir, mas ainda assim parecendo enterrar algo. – …Tive a sensação.

Porzia sentiu a garganta apertar. Ela pensou nas lágrimas de Gwyneth, na maneira como suas mãos agarraram a camisa de Porzia como se ela fosse a única âncora em meio à tempestade. Pensou na verdade não dita entre elas — como o mundo destrói mulheres como nós.

Ed não precisava pensar para perceber que a atmosfera da conversa entre eles havia mudado. Sentiu sua própria dor e seu próprio medo se manifestarem naquela mesma sala, quando a figura de manto negro falou com ele. Tentava usar daquela sensação para buscar entender o que Porzia sentia. Tentar entende-la.

– Desculpa soar repetitivo como os outros, Porzia, mas foi muito arriscado! Você se jogou na direção dela quando eu e o Jebediah estávamos prestes a atacar, e ela mesmo podia ter te dizimado em uma explosão de Sangria se as coisas tivessem sido minimamente diferentes. Você é uma lutadora, eu já te vi no ringue, e você não avança sem pensar! Então por que dessa vez?

Porque ninguém mais ia ajudar ela! – disse Porzia por fim, a voz dura e alta, e com uma imponência capaz de sentir. E que se manteve imponente e pétrea, como a mais inquebrável das guardas. Mesmo quando prosseguiu com um fundo discretamente trêmulo – … E alguém deveria ter feito isso.

Ficaram em silêncio por um longo momento. As ondas escuras correndo e quebrando. Ed exalou a fumaça do cachimbo contra o céu noturno. Quase como um suspiro pesado. E então deu um leve empurrão na boxeadora com o cotovelo.

Porzia exalou o ar como se estivesse de saco cheio, como quando fica nervosa ou pronta pra luta, mas a verdade é que estava claramente perdendo a batalha para não rir.

– Qual é, não vai me peitar não? – empurrou ela com o cotovelo mais uma vez e montou uma guarda razoável, mas ainda risível. – Vai, a gente sai no soco ali, ó, resolve tudo em 5 minutinhos!

– Que “5 minutinhos”?! – e com agilidade, bateu uma mão na guarda do detetive, desfazendoa, enquanto a outra já se precipitava pra roubar a boina do homem apenas para provar um ponto.

Eles riram no meio de provocações, xingamentos e pequenos tapas trocados como dois moleques, até estarem simplesmente rindo, dois amigos à noite no porto.

Ed deu a volta nos ombros de Porzia com um de seus braços, abraçando a companheira de equipe de forma bruta, mas sincera, com dois pequenos tapas no ombro.

– Você não tá sozinha, mulher. Nós somos um time.

A lutadora apenas sorriu seu habitual sorriso torto e enxugou o canto de um olho.

Dylan os encontrou assim — lado a lado, à luz alaranjada das lâmpadas do porto, o ar marinho penetrante de sal e lembranças.

– Então é assim que os meus investigadores se recuperam depois de uma missão traumática: bebendo, fumando e brigando que nem uns palhaços no porto. Bom saber. – o guardião da luzcruzou os braços e se escorou em um caixote próximo, como se os repreendesse, mas um sorriso afetuoso claramente se delineando em seu rosto.

– Pois é, Dylan, se você soubesse o significado de “diversão” eu juro que você ficaria pasmo em ver como isso funciona! – Porzia retrucou, desbocada como sempre, mas rindo e puxando do bolso um cigarro amassado.

– Olha só! Ofendeu sem usar nenhum palavrão dessa vez! Evolução, senhoras e senhores. – Dylan brincou, aproveitando a abertura para um comentário ainda mais ousado. – Se continuar assim, pode até se tornar Guardiã da Luz…

– Nem fudendo, cara.

Ela respondeu de pronto, enquanto ainda tentava acender o cigarro contra o vento forte que vinha do mar, a mão protegendo a chama perto do rosto enquanto a cabeça inclinada insistia em tragar tentando absorver o fogo, que Ed tentava com pouco sucesso manter aceso gastando fósforo atrás de fósforo.

Mas o guardião da luz sorriu.- Porzia… – ouviu apenas um “hm?” muito ocupado em resposta, enquanto os dois investigadores ainda se atrapalhavam pra acender um simples cigarro, sem dar tanta bola. – …Você seria uma baita Guardiã da Luz.

Finalmente tendo sucesso, a boxeadora deu um trago longo no cigarro e segurou a fumaça com uma expressão de incredulidade, uma sobrancelha erguida e a outra franzida, julgando Dylan de cima a baixo. Levantou-se e colocou uma mão no bolso da calça cinza, a outra estendida segurando o cigarro ao lado do corpo, numa postura que olhava pra seu “chefe” como se o medisse, como mede um adversário que fala demais pouco antes de entrar no ringue e ver do que ele realmente é feito.

Soprou a fumaça. Um desafio.- …Fala isso pro Mallory, ele tem muito mais cabeça pra isso. – tragou e exalou de novo. – Aposto que ele vai entrar pro “administrativo” muito antes de mim. Hah, ele ia surtar se ouvisse isso! – tragou mais uma vez, rindo com deboche e marra, mas no fundo o olhar de Porzia não escapava a Dylan. Tinha satisfação, por alguém enxergar nela pela primeira vez algo de valor que ela mesma não via, mas também receio: tornar-se um Guardião da Luz era o mesmo que “se aposentar”. E Porzia imaginava por que Dylan poderia ter cogitado isso, sentindo o vento cortante de sal marinho arder nas cicatrizes.

– Veremos. – o chefe respondeu com um sorriso.-

Olha, se você dois terminaram de flertar… – Ed interrompeu, se levantando e abotoando melhor o casaco para escapar do frio.

– Ah, vai se fuder – Porzia jogou o cigarro no chão e pisou, virando rápido pra desferir um pequeno soco no braço de Ed.

Três figuras voltando então para casa, rindo pelas ruas de Nova Faire.

Mas a noite não seria tão simples.

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O portão de ferro do Sanatório Blackwick rangeu quando Porzia passou, o cheiro de antisséptico e mofo pairando no ar. O enfermeiro-chefe — um homem magro com olhos fundos demais e uma expressão aterradora — conduziu-a por um corredor ladeado por portas trancadas e gritos abafados.

– Ele anda… agitado. – murmurou o enfermeiro, parando em frente ao quarto 14. – Continua cantando aquela maldita canção de ninar.

O maxilar de Porzia se apertou.

– É. Eu sei qual é.

A porta rangeu ao se abrir.

Giordano Brusco estava sentado perto da janela gradeada, seu corpo outrora poderoso agora murcho pelo tempo e pela loucura. Suas mãos — aquelas poderosas e calejadas mãos de boxeador — inquietas em seu colo. As cicatrizes em seu rosto eram recentes, auto infligidas, a pele ao redor delas manchada de azul pela podridão, como marcas velhas de Sangria.

Ele não se virou quando Porzia entrou.

– Você voltou. – ele disse, a voz áspera como uma dobradiça enferrujada. – Mesmo depois de tudo que você viu…

Porzia permaneceu perto da porta, os dedos decidindo se se fechavam em um punho ou mantinham-se quietos, o passo mais hesitante do que ela gostaria de admitir.

– Tive que voltar. Você me deve respostas. – embora a voz de Porzia tivesse convicção, por dentro seu coração acelerava e o estômago parecia prestes a regurgitar mesmo não tendo conseguido ingerir nada além da garrafa de uísque que Mallory servira. Era raro Porzia Brusco ter medo. Mas naquele momento, e naquela situação, algo dentro de si tremia incontrolavelmente.

Os ombros de Giordano tremeram — ele estava rindo? — quando finalmente se virou. Seus olhos pareciam… errados. Um castanho, como o dela. O outro… apenas uma enorme pupila dilatada, banhada em sombra líquida que parecia mexer e fervilhar a cada passo. A cada passo em direção a ela.

– Respostas? – cantarolou o velho, inclinando a cabeça, e por um instante Porzia sentiu o calafrio no fundo de seus ossos, revivendo de uma forma ainda mais aterradora aquela maldita noite em que encontrara o pai possuído por aquele ser maldito. E temia que estivesse de novo agora. – Você quer respostas, Porzia? Ou quer… perdão?

A canção de ninar escapou dos lábios de Giordano. Ou… Foi dos seus próprios lábios? A mesma do seu pesadelo de Sangria, a mesma que enlouquecera o batalhão de Jebediah.

A cicatriz de Porzia queimava.

E de repente, num avanço em velocidade e força alucinantes, Porzia estava outra vez sufocada e erguida do chão, a mão poderosa de Giordano ao redor de seu pescoço e apertando com intensidade e raiva, um ódio que emanava de cada poro do boxeador como fumaça densa,verde e preta, serpenteando no ar com uma energia vil enquanto braço, rosto e olhos de Giordano alternavam entre os de homem… e os de besta.

Lutando com todas as forças por um respiro de ar, Porzia não conseguia falar. Sentia toda sua força se esvair, os olhos injetados de puro pavor, a sensação horrível de não conseguir fazer nada, e o terror outra vez das garras daquela entidade nefasta…

– Não foi só o espírito, Porzia… – a criatura que a enforcava sussurrou, numa mistura tenebrosa da voz de seu pai e de uma voz tétrica, vil, maligna, ancestral. O ser inclinou-se para a frente, ameaçadoramente perto do rosto vermelho e sem ar dela. – Eu o deixei entrar! EU MATEI TOMASO, AQUELE DESGRAÇADO FRACO! – ele gritou e agitou a mulher no ar, batendo-a novamente contra a parede. Porzia queria lutar, mas sentia os músculos paralisados, até que seus olhos começaram a verter lágrimas negras e densas como piche. E a criatura se aproximou novamente. – E se você não ceder toda essa sua fúria pra mim, eu também vou te matar…

Porzia acordou num sobressalto, lutando por ar, o corpo coberto de suor como se tivesse acabado de sair da água.

Levou um bom minuto até entender que estava em casa, sozinha, e que aquilo tinha sido um pesadelo, revivendo o trauma que a cicatriz de Sangria causara.

Mas parecia real demais.

Tanto o pesadelo quanto a ilusão nefasta que tivera quando fora pega pela Sangria.

Ainda tremia quando acendeu uma vela, passou a mão nos cabelos curtos, puxando-os para trás, sentou imóvel por alguns minutos na beira da cama, até conseguir levantar para buscar algo para beber.

Mas estar sozinha naquela cozinha no meio da madrugada, a casa toda escura, como na noite em que encontrara seu pai e Tomaso e…

Pressionando os olhos com força, Porzia sentia uma dor excruciante, como se lhe rasgassem o peito com garras. Quis chorar, mas talvez já tivesse acabado com toda sua cota de lágrimas do ano naqueles pesadelos induzidos pela sangria, então só lhe restou gritar com toda a raiva, dor e ódio que borbulhavam dentro dela, mesmo que temesse parecer insana para os vizinhos.

Tão insana quanto seu pai.

Respirou fundo com os olhos vermelhos e marejados. Foi tomar um banho e trocar de roupa. Em pouco tempo, o sol raiaria, mas ela já tinha recobrado o fôlego. Exatamente como uma pugilista bem treinada, que levanta depois do pior dos socos com a determinação férrea de ditar o rumo da próxima rodada.

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O Sanatório Blackwick – o verdadeiro – cheirava a madeira velha e café fraco no início da manhã. Porzia cumprimentou os enfermeiros e doutores enquanto se identificava na recepção mais uma vez.

O salão de visitas estava começando a receber os primeiros pacientes, alguns felizmente se juntando a familiares que ainda tinham e que lembravam de visita-los. A luz leitosa do sol ainda se levantando era filtrada pelas janelas embaçadas do frio da noite, e pelas cortinas amareladas que guardavam anos e anos de histórias vividas ali.

O velho Brusco foi acompanhado por um dos enfermeiros até a entrada da sala, de onde caminhou sozinho até uma cadeira ao lado de uma pequena mesa de madeira escura e antiga. Porzia o observou de longe por todo o caminho. Ainda existia uma mancha de medo, de ansiedade e apreensão em si… Mas respirou fundo e foi em direção ao homem.

Aproximou-se com mais cautela do que gostaria de demonstrar, e sentou-se em frente ao pai na sala de visitas iluminada pelo sol, as mãos apertando firmemente um copo de papel com um café horrível. Entre eles, um tabuleiro de xadrez que fora esquecido por alguém sobre a pequena mesa de madeira permanecia intocado.

Giordano Brusco parecia muito menor do que ela se lembrava. Sua estrutura, outrora poderosa de boxeador, mesmo com a idade já avançada, havia amolecido com o confinamento. Os nós de seus dedos — rachados de socar paredes em seus momentos mais sombrios — repousavam suavemente sobre a mesa. Seus olhos, quando encontraram os dela, estavam límpidos.

– … Você parece cansada. – Giordano observou com uma voz enfraquecida e com certo pesar.

Porzia deu um sorriso irônico.

– E você tá uma merda, velhaco. – respondeu com o esboço de um sorriso no rosto.Giordano deu de ombros.

– É preciso ser um para reconhecer o outro.Um resquício de seu antigo sorriso brilhou em seu rosto, e por um momento, aquela visão de seu pai sendo exatamente quem ela sabia que ele era – seu pai – fez o coração de Porzia se aquecer. O olhar do velho boxeador caiu então sobre a cicatriz recente de Sangria em seu antebraço, a pele ainda brilhante e nova. A garganta de Porzia se contraiu.

– Eu vi você – murmurou ele, a voz pesada. – Quando aquela coisa te levou, de alguma forma. Como se eu tivesse o mesmo pesadelo. Você estava…

– … presa em uma camisa de força, sim. – Porzia flexionou a mão, a lembrança de amarras fantasmagóricas coçando sua pele. Haviam muitos medos que nenhum dos dois lutadores gostaria de admitir. Medo da loucura. Medo da própria raiva. Da própria violência… – … Você tentou me estrangular.

Giordano estremeceu. Por um momento, seus olhos ficaram distantes, nublados. Seus dedos se contraíram contra o tampo da mesa. O olhar parecendo confuso, perdido e desolado.

– … Fui eu? Ou foi a coisa dentro de mim?

Porzia estendeu a mão sobre a mesa imediatamente, cobrindo a dele com a dela e apertando com força.

– Não sei. E não me importo. – falou com toda a convicção, olhando fundo nos olhos já acinzentados dele.

Giordano virou a palma da mão para cima, agarrando os dedos dela com uma força surpreendente. Sua expressão parecia, pela primeira vez, derrotada. O peito cheio, apertado, o rosto retorcido em uma máscara de dor – uma que Porzia só vira quando sua mãe fora embora, e quando Giordano descobrira que Tomaso…

Eu me importo. – a voz do homem cortou o ar, torturada e falha. – Todos os dias, eu me pergunto o que sou eu e o que é aquilo. Todos os dias. E se eu ainda vou machucar você.

A luz do sol atravessava as janelas gradeadas, pintando listras na mesa gasta entre eles. Em algum lugar no salão, um paciente riu — alto, alegre e descontraído.

Porzia sentiu no peito a dor compartilhada com o pai. A força bruta construiu o vínculo entre eles, aquela revolta com o mundo e vontade fervente de virá-lo do avesso, mas poderia ser também o que o destruiria. Segurou suas próprias emoções para não sobrecarregar o pai – ele parecia tão frágil depois de tudo aquilo… – e acariciou a mão dele outra vez, tentando trazê-lo de volta ao chão, “eu ainda estou aqui”. Traçou com os dedos os nós dos dedos dele, como se lesse a história de vida dos dois naqueles calos e cicatrizes.

– Sinto falta da academia. – disse Giordano de repente, a voz já mais calma. – O cheiro de couro e suor… O jeito que você ficava com aquele olhar quando eu te mostrava uma combinação nova de golpes…

Ela riu e engoliu em seco o nó na garganta.

– Você era um péssimo professor.

– Você era uma aluna ainda pior.

Eles riram juntos, lembrando daqueles momentos em que a presença de um curava a dor do outro, quando a ausência de uma esposa e de uma mãe doíam, mas a companhia de um pai e de uma filha – e dois grandes teimosos, cabeças-duras e esquentadinhos – ajudava a preencher as lacunas e remendar as feridas.

Ficaram depois em silêncio por um longo momento, o peso de todas as palavras não ditas pressionando entre eles.

– Desculpe. – sussurrou Giordano.

Porzia apertou a mão dele com força.

– Por quê?

– Por te deixar sozinha. – O polegar dele roçou os nós dos dedos dela, o mesmo toque calejado que outrora guiara seus punhos, na época em que o mundo fazia sentido. – Por não ser mais forte.

Porzia se inclinou para a frente, a voz baixa e feroz.

– Me escuta: você ainda tá aqui. É só isso que importa. Ouviu?

Os olhos de Giordano brilharam.

– Minha menina durona!

– Com toda certeza, pai.

Na entrada do salão, uma enfermeira anunciou o fim do horário de visitas. Nenhum dos dois hesitou um instante para se moverem adiante e se abraçarem, forte, tanto quanto aqueles dois conjuntos de músculos treinados conseguiam. O aperto de Giordano aumentou brevemente antes de soltar.

– Você vai voltar? – Ele perguntou, e por um momento, ele era apenas o pai dela novamente. Não um paciente, não uma vítima da Sangria. Apenas um homem que amava a filha.

Porzia se levantou, dando um beijo em sua testa.

– Não perderia por nada nesse mundo, velhaco.

E enquanto se afastava, ela o ouviu cantarolando — não a canção de ninar, mas a velha canção de boxe que ele lhe ensinara quando ela era pequena.

E ela soava como esperança.

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Ana Dabs Carvalho
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