Retirado do diário de Santiago Moreno
Eu tinha 13 anos quando fui descartado. Meus pais me empurraram para dentro de um carro, como se eu fosse um saco de lixo. “É para o seu bem”, disseram.
Para o meu bem… não existia nada de bom naquilo. Eu vi nos olhos deles o alívio. Não era amor, não era cuidado — era uma missão cumprida. Eles tinham encontrado um lugar pra me esconder, pra fingirem que eu não existia. A doença não era minha. Era deles. Uma doença de vergonha e medo. Eles tinham medo de mim. De quem eu era. E me despacharam para um manicômio.
Quando eu cheguei lá, enfiaram-me num quarto pequeno, frio e… branco. Branco demais. Branco como um véu de morte. As paredes eram brancas, o teto era branco, até o silêncio parecia branco. Uma ausência de vida. Não demorou para eu entender que aquele lugar não era feito para nos curar. Era feito para nos apagar.
As vozes já falavam comigo naquela época. As sombras me seguiam, cochichavam coisas que ninguém mais ouvia. Isso assustava. A mim, não. A eles. Meu pai, minha mãe, os médicos, os enfermeiros. Uma vez, no primeiro dia, eu mencionei a menina do vestido branco. Vi ela parada no corredor, olhando pra mim com os olhos mais tristes do mundo. “Quem é ela?”, perguntei. O médico só me olhou por cima dos óculos e anotou alguma coisa na prancheta. Disse que eram alucinações. Disse que eu precisava de um tratamento adequado. Foi aí que começou.
DESUMANO, DESAMPARO, DESESPERO
Tratamento adequado… vocês sabem o que isso significa? Vou contar pra vocês. Significa ser arrastado de madrugada, sem aviso, enquanto você grita e esperneia, mas ninguém te ouve. Porque gritar naquele lugar não fazia diferença. Eles te amarram numa maca com tiras de couro, firmes, apertadas, e te colocam uma coisa de borracha entre os dentes pra você não morder a própria língua. Os choques vêm em rajadas curtas, mas é como ser atingido por uma tempestade elétrica. Seu corpo convulsiona, seu coração parece que vai explodir. A cabeça dói, mas o pior é a sensação. A sensação de estar se partindo em mil pedaços. Quando termina, você mal sabe quem é. Nem onde está. Só queria morrer…
Às vezes era pior. Nos dias de punição, eles nos forçavam a entrar em banheiras de água gelada. Gelada a ponto de cortar a pele, de congelar a alma. Eu tremia, batia os dentes. Chorava. Me diziam que era pra “acalmar os nervos”. Acalmar. O frio me engolia, como um poço sem fundo, enquanto eles ficavam ali, nos olhando, fumando cigarros. Eu via o sorriso de canto de boca do enfermeiro, como se dissesse: “Isso é o que você merece, garoto.” A humilhação era o remédio deles.
Sabe o que eles faziam com os outros internos que sumiam? É… sumiam. Eles desapareciam do refeitório, dos corredores, das terapias. Ninguém falava sobre isso. Se você perguntava, te sedavam. Só diziam: “Está melhor agora. Fique calmo, Santiago.” Eu não ficava calmo. Eu sabia que era mentira. O que vi naquela clínica, ninguém deveria ver. Vi olhos que nunca mais voltariam a brilhar. Vi gente que era só um corpo respirando, mas sem alma. Vi dor, muita dor. E ninguém se importava.
SEM MEDO
Eu saí de lá depois de um ano. Um ano… de choques, banhos, remédios e pesadelos que nunca iam embora. Mas sabe o que é engraçado? Eles acharam que tinham me quebrado. Me deram remédios, me fizeram parecer dócil, apagado. Só que no fundo, eles me deram algo mais. Eles me deram raiva. Eles me ensinaram como é ser descartado. Como é ser tratado como lixo, como um número, como um defeito a ser escondido. E por isso… eu vejo o mundo de outro jeito.
O que fizeram comigo, eles fazem com o todo o mundo. Com o planeta. Com Gaia. Com todos nós. Pegam o que não entendem, o que não podem controlar, e destroem. Se livram. Nos tratam como descartáveis. Jogam lixo nas florestas. Matam os rios. Espremem cada gota de vida da Terra até só restar branco. Um branco vazio, doentio, estéril. Como as paredes daquele quarto.
Mas eu saí de lá. Eu sobrevivi. E agora eu luto. Não só por mim, mas por todos nós. Por aqueles que eles destruíram, apagaram, roubaram. Eles queriam me apagar, mas me acenderam. Me transformaram em algo mais. Algo que eles não podem controlar. Eles despertaram o fogo da fúria em mim. E o fogo não sente medo.