Trecho retirado dos arquivos do escrevidão Scriba da Mezza Ciotola.
A Incumbência!
Dado no 14º Dia da Lua do Mouflão, no Ano 1022 do Calendário do Reino.
Quão longas e fatigantes semanas foram estas!
Sob as ordens da nobilíssima e eternamente entediada Visconducharesa de Falcamonte, Caterina de Sciolto, fui incumbido de registrar a maior festividade pagã do norte da bota sinistra para seu acervo pessoal dos tomos “Factos e Causos do Reino”.
Confesso, com certa relutância, que temi pela minha própria segurança, visto que os rumores que cercam o evento são escassos e, quando fidedignos, evocam a rixas desenfreadas, violência desmedida, devassidão alcoólica e o uso descomedido de substâncias inebriantes, culminando, inevitavelmente, em mortes! Porque, afinal, o que seria de uma festividade pagã sem uma dose de caos e destruição, não é verdade?
Enganaram-se redondamente!
Não testemunhei uma única morte.
Quanto ao restante, veja bem, o restante é exatamente como se apregoa…
Mas, permitam-me, caros leitores, iniciar pelo princípio!
O Princípio!
O local de encontro, misteriosamente variável a cada ano, sempre se dá em alguma das inúmeras comunidades dispersas ao longo das margens do Rio Fossa. Não há, ao que parece, razão discernível para tal escolha, e tampouco alguém tem conhecimento prévio do local exato. Planejamento, ao que tudo indica, é uma heresia para a fé desses bárbaros…
Tal qual as bestas que, ao inverno, migram para climas mais amenos, criaturas de todas as raças, guiadas por um instinto ancestral, percorrem a região até desvendarem um desses ocultos assentamentos.
A terra!
Sendo uma terra vasta e inóspita, as planícies pagãs se apresentam como regiões longínquas, de solo lodoso, onde as chuvas incessantes e os rios serpenteantes conspiram para tornar a passagem dos viajantes uma verdadeira provação.
Javalis ferozes, ursos indomáveis, lobos famintos e bestas mágicas são apenas alguns dos perigos que espreitam nesse rincão. Além disso, brigantes e salteadores, sempre à espreita, obrigavam-me a repousar com um olho vigilante, embora, à exceção de um incidente isolado com um terrível malebranque, a travessia se revelou mais pacífica do que ousara prever. Para minha surpresa, não fui devorado em plena jornada.
Este território conta com alguns líderes locais, ainda que, em termos oficiais, toda a extensão se encontre sob o domínio dos Duques de Galaverna. Nomes como “Bandidos do Baixa” e Ardarico ressoam aqui e ali como figuras de certa notoriedade, porém, nenhum deles parece deter mais influência do que a Silvestre conhecida como a Matriarca, durante o curso de La Balburdia.
Os primeiros convivas!
No quarto dia de minhas andanças pelas margens do Fossa, deparei-me com um grupo deveras singular de Silvestres, que se dirigiam ao Festival. Havia neles uma curiosa semelhança com cabritos Boer. Estes peculiares indivíduos carregavam enormes barris de Grappa Del Bosco, uma bebida de sabor notável, destilada a partir do bagaço de uva e dotada de propriedades extraordinariamente revigorantes, produzida pelos próprios Silvestres e especialmente preparada para a ocasião.
Apresentei-me, confesso, com certo receio, entretanto, sob uma salva de vaias entusiásticas de “vira, vira, vira”, fui prontamente acolhido no seio do grupo. Aparentemente, fui transportado por algumas horas, pois a força daquela bebida revelou-se muito além do que eu imaginara.
Quando recobrei os sentidos, na manhã seguinte, já me encontrava em um desses assentamentos provisórios.
O primeiro assentamento!
Quanto à localização exata, não sou capaz de precisar, todavia, os habitantes, com convicção embriagada, asseguraram-me que, a Leste, a Espinha do Titã se erguia como destino de nossa peregrinação, visível mesmo através da espessa neblina que perpetuamente envolvia a região. Confiar em almas embriagadas para a orientação geográfica é, como sabemos, sempre uma decisão de sensatez questionável.
Permaneci no acampamento pelos três dias subsequentes, e, durante esse período, compartilhei do pão e do vinho com os bárbaros locais. Em nenhum momento fui inquirido ou interpelado; todos pareciam ébrios demais para me dar qualquer importância. De quando em quando, brigas rebentavam no seio do acampamento, mas eram prontamente substituídas por risadas e abraços, contanto, logo percebi que muitas dessas lutas não passavam de um hábito arraigado, próprio dos reencontros entre almas saudosas.
Os ditos!
Procurei travar conversa com o maior número possível de almas presentes e raros foram os que não me deram ouvidos ou que não me ofertaram mais uma taça ou uma baforada de seus cachimbos. Confesso que não sei qual dos dois foi mais eficaz em perturbar-me os sentidos. Creio até ter aprendido um ou dois novos dialetos próprios dos ébrios.
A vasta maioria dos festeiros provinha da própria região. Aqueles que vinham de terras distantes eram, em sua maioria, descendentes, migrantes ou comparsas. Em essência, participavam da Balbúrdia desde o berço e a repetiam ano após ano. Ninguém sabia precisar quando tal celebração havia começado, nem se os motivos originais ainda subsistiam. E, quanto às regras, não havia uma só escrita; para falar a verdade, não havia absolutamente nada redigido. A taxa de analfabetismo do condado não era maior apenas porque, ao que parecia, os pagãos também não sabiam contar. Não obstante, percebi que alguns ditos eram frequentemente repetidos, sobretudo para os mais jovens.
“Non è per contare con la fortuna, nella balburdia mai si muore!” ou, “Não se conta com a sorte, na Balbúrdia não há morte”
“Se qualche balburdia precede, bere più che dell’ultima devi.” ou “Se alguma Balbúrdia precede, beber mais que a última deve”
Pela quantidade de celebrantes desfalecidos pelos cantos, percebia-se que seguiam os ditos populares com uma devoção admirável!
A formação da comitiva!
Grupos numerosos e andarilhos solitários afluíam incessantemente. Ao final do terceiro dia, uma fogueira colossal foi erguida. Os pagãos dançaram, beberam e entoaram cânticos ao seu redor até o romper da aurora, e eu, com todas as minhas forças, os acompanhei na medida do possível.
Despertei aos primeiros raios de sol, observando o acampamento de tendas espessas e manchadas sendo desmontado. Burricos e pangarés eram atrelados a carroças decrépitas, nas quais se amontoavam quantidades prodigiosas de víveres. Não havia um único presente que não estivesse carregado com sacas ou mochilas abarrotadas, e todo esse labor era conduzido sem que se deixasse um único caneco vazio. A fartura de mantimentos era surpreendente, porém, a quantidade de álcool superava qualquer expectativa – tal que poderia promover a embriaguez de várias cidades inteiras.
Um verdadeiro milagre de multiplicação do vinho… ou melhor, da grappa, neste caso. Santa Birra ficaria orgulhosa!
Célere, arrumei meus parcos haveres e me pus em movimento com a plebe. Apesar da farra inebriante, meu propósito ali era testemunhar e registrar tudo que fosse possível.
A Travessia!
Seguiram-se mais quatro dias de travessia pelas vastas planícies, durante os quais encontramos outras turbas que se juntaram à procissão. Cantorias e marchas eram uma constante. Tambores, flautas, violas de gamba e cornamusas embalavam a multidão. Um verdadeiro espetáculo musical, caso se aprecie ouvir a mesma melodia incessantemente enquanto se tropeçava na lama.
Quando finalmente chegamos ao sopé da Espinha do Titã, as carroças foram descarregadas e os animais foram soltos. A partir dali , graças ao relevo íngreme, apenas os andarilhos continuariam a peregrinação.
A Matriarca!
Foi nessa algazarra de preparação que vi pela primeira vez a tal Matriarca, uma Selvagem com todos os anos possíveis nas costas. Os cabelos volumosos e grisalhos chegavam até o meio das costas, que se entrelaçavam a uma penugem grossa. Usava pintura de batalha no rosto, feito de algum material negro como a noite. Apoiava-se em uma das famosas bingolas, pás de pizza reforçadas que algumas tribos da região usam como armamento. Mesmo muito idosa, era altiva e forte, e o sorriso simpático desdentado não abandonava seu rosto.
Talvez o efeito da cerveja a tornasse mais afável.
Ou, talvez, fosse a cerveja que turvava meu julgamento.
Não posso assegurar com plena certeza.
No entanto, aquela mulher, dotada de uma astúcia admirável, tinha o dom de impor ordem no meio do tumulto. Sua voz, ao dirigir-se ao grupo, era firme e retumbante, como o clangor de um sino; mas, quando se voltava a um indivíduo em particular, tornava-se suave e envolvente, com uma ternura quase maternal.
Deste ponto em diante, caro leitor, solicito vossa indulgência, porquanto, confesso que meu relato é falho em alguns detalhes, em parte devido à crescente euforia dos festejos.
A Espinha do Titã!
Subimos a Espinha, e, se minha memória não falha, em um dia e meio chegamos ao topo. Uma verdadeira maratona, ainda mais com os sentidos rendidos à embriaguez!
Era final da tarde e a paisagem, de uma assombrosa grandiosidade.

A visão agourenta!
De um lado, estendia-se a vastidão das Planícies Pagãs, eternamente veladas por uma névoa branca e fofa, reminiscente da lã de um cordeiro recém-tosquiado. Do outro, erguia-se imponente um paredão de fumaça acinzentada que subia em espirais até os céus, formando a abóbada temida da Fumaré. Contemplar tal fenômeno do alto da montanha concedeu-me uma visão nova e profunda, uma percepção melancólica que jamais havia experimentado.
A Penúmbria, tida em todo o Reino como um território amaldiçoado, evitada pelos prudentes e temida pelos ignorantes, revelava-se agora, vista de tão privilegiado mirante, como um desolado símbolo de todos os tormentos da existência. Esta sensação de funesto pessimismo pareceu atravessar, como uma sombra, o espírito de todos, pois, pela primeira vez, aquele séquito caótico se manteve em um silêncio pesado, a contemplar em comunhão o cenário maldito.
Essa quietude solene prolongou-se durante a montagem das tendas e a arrumação das provisões, contudo, cedeu, como seria de se esperar, à tentação do abrir dos primeiros tonéis de grappa.
Os fundamentos!
Em conversas com alguns dos mais veneráveis celebrantes, obtive respostas vagas, mas suficientes para esclarecer o essencial. A Balbúrdia, ao que parece, celebra o fim da Mala Tempora, a Lua da Serpente, aquele período em que Madame Agouro estende seu funesto manto sobre o Reino e a Fumaré desperta com fúria renovada.
Arrisco dizer que a Balbúrdia é, em parte, um gesto desafiador à Deusa, um atrevido “non mi prendi,” seguido de expressões que não ousarei reproduzir em tão digno registro, e celebra, ao mesmo tempo, o Equinócio da Primavera, a própria vida e presta homenagem às almas perdidas durante aquele sombrio período.
Talvez eu esteja a tecer filosofias além da conta, e, no fim das contas, esses rústicos só desejem uma desculpa para um Carnaval daqueles!
Voltemos, pois, aos registros.
Os benditos jogos!
Os dias que se seguiram permanecem envoltos em uma névoa espessa, difusa em minha mente, presumo, talvez, que tenham sido algo entre três e sete.
Muitos dos afamados jogos das Tabernas de Falcamonte faziam-se presentes, como a Justa de Pobres e as Competições de Comilança e Bebedeira, além de uma peculiar variante do “tomba barril,” onde um infeliz jovem era encerrado em uma rústica barrica. Outro entretenimento era o Resta-Um, travado em um antigo trono de pedra, onde uma multidão amorfa de competidores se engalfinhava até que apenas um retivesse a posse do trono. O Arremesso de Tronco, embora curto devido à escassez de madeira, não deixava de surpreender ao lançar verdadeiras árvores encosta abaixo, enquanto a mais animada de todas as competições, a Disputa de Bingolas, consistia em dois rivais adentrando o círculo com as famigeradas pás de pizza, onde apenas um saía consciente.

Neste momento, os mantimentos foram drenados até o último grão. Nenhum dos convivas parecia se importar com o retorno, o que, confesso, causou-me grande apreensão. Cada aspecto da festividade intensificava-se à medida que o desfecho se aproximava. As pelejas tornaram-se mais ferozes, os cânticos mais estridentes, e o fluxo de álcool, infinitamente mais copioso. Recordo-me de certa manhã em que despertei com a sensação de estar em um campo de batalha pós-escaramuça. O silêncio era lúgubre, e o estado dos festeiros fez-me duvidar da saúde de muitos.
Caminhei, trêmulo e atemorizado, até ouvir o brado ecoante de um corno de boi, que trouxe vida de volta ao acampamento. Antes que pudesse recompor-me, fui tragado por uma peleja matinal. Suspeito que dois de meus dentes tenham ficado pelo caminho naquela contenda.
Tudo finda em pizza!
Mais tarde, no mesmo dia, um grupo sob a liderança da Matriarca começou a preparar algo grandioso: uma pizza colossal, descomunal, grande o suficiente para envolver um morgante de porte avantajado, ainda sobrando espaço para dobrar um travesseirinho.
Apenas mais tarde percebi que aquilo marcava o início do fim da Balbúrdia. Todos os convivas, com entusiasmo renovado, seguiram o bailado dos pagãos e suas ágeis bingolas, guiando em uníssono aquela imensa massa a uma reentrância que até então me passara despercebida, muito quente na encosta. Dali emanavam vapores cálidos, provenientes das entranhas da montanha, o sangue de fogo da Espinha do Titã, que serviria de forno para tal banquete.
Infelizmente, não pude assistir ao ritual completo da manufatura da pizza. Enquanto o espetáculo se desdobrava diante de nossos olhos, bebidas cuidadosamente reservadas para aquela ocasião única, circulavam entre a plateia como se fossem parte integrante do próprio ato. Já bastante ébrio, ponderei, por um momento fugaz, recusar o próximo gole, mas os olhares reprovadores e ligeiramente contrariados dos meus companheiros logo me compeliram a recuar dessa ideia.
Ao despertar na manhã seguinte, boa parte do acampamento já se encontrava deserto. Ao meu lado, porém, envoltos em panos limpos, repousavam três generosos pedaços daquela iguaria.
E como é sabido por todos, a melhor pizza é a que se aprecia na manhã seguinte, devorada com uma ressaca impiedosa, dois olhos roxos e alguns dentes a menos.
A súbita compreensão!
Recolhi meus parcos pertences e despedi-me de queridos retardatários, os quais pareciam pouco inclinados a partir. Para alguns que haviam sabiamente racionado seus mantimentos, a festividade ainda se estenderia por mais alguns dias.
Olhei pela última vez para a Fumaré e, ao contrário da minha primeira impressão, senti-me revigorado e desperto. Meu coração exultava. Havia sobrevivido a mais uma Mala Tempora, e, com a bênção do Pai Ternal, haveria de sobreviver novamente no ano vindouro.
Quem, em seu juízo perfeito, poderia supor que, entre tantos bárbaros violentos e inconsequentes, pudesse florescer uma camaradagem tão sincera e uma empatia tão inesperada?
Mas agora, meu foco deveria ser sobreviver à jornada de volta, com rações escassas, pouca água e rezando para que brigantes, demônios ou lobos não cruzassem meu caminho.
Quão longas e fatigantes semanas foram estas!
Mal posso aguardar pela próxima Balbúrdia.